Programação (I)
Na área da programação, o discurso radiofónico do período que
decorre entre 1958 e 1974 foi influenciado pelos anos precedentes.
Programas como “Talismã”
(nascido em Dezembro de 1951) e “Onda do Optimismo” (que fora pela primeira vez para o ar no dia 1
de Janeiro de 1953) irão atravessar praticamente toda a época estudada,
arrastando-se rotineiramente. Farão parte dos programas que, entre discos entremeados
de publicidade e dois dedos de conversa, terão o seu público, mas serão
ultrapassados por novas propostas, apresentadas de forma lenta mas segura, ao
longo dos anos.
Fazem parte de uma rádio introvertida, virada para si mesma,
envergonhada e inibida. Uma rádio de cabina, realizada à base do diálogo entre,
normalmente, dois locutores, cada vez mais rendidos quer às «rodelas pretas»,
os discos de vinil, que inundam as estações, quer à publicidade.
É a rádio bonançosa, tranquila e sossegada, cuja preocupação é não
mais que distrair, modelo do qual também fez parte o “Clube das Donas de Casa”, vespertino, com uma
audiência avaliada em cerca de 800 mil ouvintes.
Mas os grandes êxitos de audiência eram os programas de humor, os
folhetins, os discos pedidos e os programas desportivos.
Nos programas humorísticos destacavam-se a “Voz dos Ridículos” e os “Parodiantes de Lisboa”, os
quais obtinham cerca de 20% de audiência. O programa “Graça com todos” recebia, em 1961, uma média
de 25 cartas por dia, muitas delas para a personagem de “o compadre
alentejano”. Com o passar dos anos, contudo, o império do riso cai em desgraça,
aos olhos da crítica, que lhes aponta o excesso de anúncios, por um lado, e a
perda de graça, por outro, mas mantém a massa das audiências que, em 1970, lhe
assegura a liderança das preferências entre os programas publicitários, com
18,3% de escutas, de acordo com a Norma.
Ainda dentro deste modelo inicial, marcado pelo sucesso de o “Zéquinha e a Lélé”, como
ficou conhecido o folhetim “Força do destino”, uma sequência de 54 diálogos da
autoria de Aníbal Nazaré e Nelson de Barros, interpretados por Vasco Santana e
Irene Velez, os folhetins
radiofónicos serão, ao longo dos anos 60, um dos principais alicerces da
audiência radiofónica e uma das constantes matérias de crítica:
«(…) todas elas [as donas de casa] se
debruçam, em ânsias, sobre o caríssimo rádio estereofónico de quatro bandas ou
sobre o modesto transístor comprado a bochechas ao contrabandista – quando a
hora do Folhetim chega finalmente», analisava Óscar
Pontinho.
O folhetim era uma presença constante nas grelhas de programas.
Fizeram furor, no Rádio Clube do Norte, “Ciúme que mata”, em 1959, e no Rádio
Clube Português (RCP), “o inimigo”, vencedor nesta categoria nos prémios de
popularidade, organizados pela revista especializada “Rádio & Televisão” e
votados pelo público, em 1962, ano em que o RCP lança as suas matinés teatrais.
O folhetim conheceria, em 1973, um êxito retumbante, com “Simplesmente Maria”,
uma novela radiofónica que relata a história de uma costureira que imigra para
a cidade, torna-se criada, mas fracassa ao nível sentimental, uma vez que,
ficando grávida de Alberto, um estudante, este lhe recusa o casamento.
Transmitida na Rádio Renascença (RR), às 14h 15m, depois de ter passado pela
Espanha, Brasil e Argentina, país de onde é natural a autora, uma advogada sob
o pseudónimo de Célia Alcântara, «em poucos meses, graças a uma publicidade
poderosa, Maria [a personagem principal] ultrapassou Eusébio e Amália em
popularidade».
Os discos pedidos eram uma das tipologias mais ansiadas pelos
ouvintes. Mesmo dispersos pelas várias emissoras, obtinham elevado número de
pedidos, incluindo as emissões e as estações menos conhecidas que recebiam
elevados níveis de correspondência; na Rádio Alto Douro dava entrada uma média
de duas mil cartas por mês e à Rádio Pólo Norte, Emissora das Beiras, no
Caramulo, chegava, mensalmente, cerca de um milhar de pedidos. O maior êxito de
todos, “Quando o telefone
toca” chegou a ser emitido, ao mesmo tempo, pela RR, com Joaquim Pedro,
pelo RCP, com Matos Maia, e pelos Emissores Associados de Lisboa (EAL), na
Rádio Peninsular, com João Paulo Dinis; preenchia então mais de metade dos 20
por cento de audiência deste género. O fenómeno era de tal forma generalizado
que Oscar Pontinho salienta, em crónica de espectáculos, o caso de uma
Radiolândia, “país” onde se destacam os “pedintes”, os que pediam discos. Numa
crítica de rádio anterior, Jorge Guerra desabafava «Ufff!… Muito se pede neste País. E, especialmente, discos», a
propósito, da programação dos EAL, nomeadamente da Rádio Graça, onde, em cinco
horas de emissão, «(…) apenas [houve] TRÊS HORAS DE DISCOS PEDIDOS!».
Excepcionalmente, o desporto mantém-se um sector vivo e dinâmico.
Vindas de uma tradição fortemente marcada pelas transmissões de hóquei em patins, «modalidade
altamente radiofónica», em que Portugal era habitualmente vencedor, as
transmissões desportivas eram um sucesso; em 1972, atingiam cerca de sete por
cento de audiência. Quando a Federação Portuguesa de Futebol permitiu, passada
a resistência inicial (que após uma primeira fase de interdição total, apenas
permitia a entrada em campo dos repórteres na segunda parte dos jogos, como
defesa contra o receio do afastamento do público dos estádios, obrigando os
profissionais a fazer o resumo da primeira parte e só depois o relato da
segunda), o relato de futebol integral, o desenvolvimento da modalidade
(traduzido na cobertura simultânea de toda a jornada, no início da década, com
a cobertura das participações internacionais das principais equipas
portuguesas, culminado com a exibição da equipa nacional no Campeonato Mundial
de Futebol, em Inglaterra, em 1966, onde ficou classificada em terceiro lugar)
levou o futebol ao lugar cimeiro nas emissões desportivas e no interesse dos
ouvintes. Nos anos 60, é já inconcebível qualquer jornada internacional em que
participasse uma equipa portuguesa, sem a cobertura da rádio, pelo menos da EN.
O primeiro sinal de mudança surge no dia 25 de Junho de 1958, quando
a RR transmite um programa de ficção científica, “A invasão dos marcianos”. Matos Maia, o seu
realizador, é convidado a prestar declarações na PIDE :
«Não foi a Terra a invadida mas sim os
estúdios da Rádio Renascença. E por fim não foram os marcianos os dominados,
mas o produtor e os colaboradores do programa que tiveram de ir sob prisão,
justificarem-se ao Governo Civil do «crime» de terem tentado fazer na Rádio
portuguesa uma novidade, novidade que tem 20 anos nos países cultos!…».
Tudo começou depois das 20 horas, quando António Revez interrompe
a apresentação de Orquestras Ligeiras para dar uma notícia especial: «Às
19horas e 45, o Dr. Jorge da Fonseca, do Observatório Meteorológico de Braga,
diz ter observado várias explosões de gás incandescente que ocorreram, com
intervalos regulares, no planeta Marte. O espectroscópio indica que o gás é
hidrogénio e se move em direcção à Terra com tremenda velocidade». O locutor
completa ainda: «O professor Dr. Manuel Franco, do Observatório Astronómico de
Cascais, confirma a observação do Dr. Jorge da Fonseca, e descreve o fenómeno
como «um jacto de chama azul disparado por uma arma». (pausa) Em continuação da
nossa rubrica com Orquestras Ligeiras, apresentamos a orquestra de Dick Jacobs
em Peticots of Portugal».
O impacto do programa efectuou-se quer no público (alguns ouvintes
chamaram os bombeiros) quer na ruptura que representou em relação à rádio que
então se realizava: «Não terá tudo sido principalmente resultado dum longo
hábito de sonolência radiofónica, de repente cortada pela campainha do
despertador?».
A revista especializada, “Rádio & Televisão”, explicou o modo
como a emissão se desenrolou: «A estação suspendia a emissão, de vez em quando,
e avisava que estava a transmitir «ficção»; mas quem sabia o que era «ficção»
em Rádio? Conheciam-se as palestras de circunstância, as recomendações para se
ver um filme cuja distribuidora sabe abrir os cordões à bolsa, os relatos da
bola, os muitos «todos tomam tudo» que para aí andam, «se está constipado coma cimento
armado», e, vá lá, a prosa do Leite Rosa, os perfis de Igrejas Caeiro e os
foguetes de talento do «Sr. Olavo de Eça Leal». Agora «ficção»? Quem jamais em
tempo algum vira sombras desse monstro na nossa Rádio?». Era a primeira
manifestação de inconformismo em relação à letargia e ao “cinzentismo”
radiofónico.
No ano seguinte, também a Rádio Renascença, contrariando a
tradição de o Verão ser considerado época radiofonicamente baixa, lança em
Agosto a sua nova programação, inspirada no lema “mais música e menos
palavras”, como o programa “Bom
dia e boa música”. Fazia parte dessa nova grelha o “Diário do Ar”, programa
vespertino transmitido a primeira vez no dia 15 de Agosto de 1959, produzido
por Paulo Cardoso, que impulsionou a sua componente informativa, levando os
microfones para a rua, auscultando o que se passava no exterior dos estúdios.
Pela primeira vez a rádio ousa sair da cabina e entregar-se a alguns estímulos
da vida, como a cobertura de uma prova desportiva internacional, no Canal da
Mancha, realizada por Fialho Gouveia, enviado especial a Calais e Dover,
relatando os incidentes ocorridos com o desportista Primo Ferreira, prestes a
afundar-se. O programa privilegiava o relato, com a emoção do momento, à sua
maior correcção formal “a posteriori”. É o início da rádio em “mangas de
camisa”.
Paralelamente a esta nova sensibilidade aos acontecimentos
relatáveis, inicia-se, simultaneamente, um outro novo fenómeno - o alargamento
dos horários dos programas, em especial durante as horas nocturnas.
Em 1959, a RR lança a “23ª Hora”, um programa transmitido entre as 23h e as 2h, que se
iniciou em 10 de Novembro de 1959 e que permanecerá até 1974, representando uma
descompressão em relação à formalidade habitual.
Também em 1959, mas agora no RCP, surge durante o Inverno um
programa que, ocupando as primeiras horas da emissão, vai dinamizar as noites
na rádio, estabelecendo uma maior proximidade em relação aos ouvintes. O “Meia-Noite”, que foi para o
ar a primeira vez no dia 10 de Outubro de 1959, ao tornar-se o primeiro grande
programa nocturno da rádio, reforçará, igualmente, o investimento na cobertura
de factos, como o Natal, o Carnaval, a inauguração de Brasília, os Santos
Populares ou ainda a comemoração da independência portuguesa, no dia 1 de
Dezembro. Percursor, em algumas datas festivas, do prolongamento da emissão até
às sete horas da manhã, como nos casos das noites de Natal (1959 e 1960), de
Carnaval (1960 e 1961), das passagens de ano e dos seus próprios aniversários e
dos do RCP (como ocorreu em 1962, aquando dos 32 anos da estação, com uma emissão
especial, desde as 21h até às 4h da madrugada), o “Meia-Noite” desbravará
caminho que permitirá ao RCP transformar-se na primeira estação de rádio com
emissão ininterrupta.
Assim, em Agosto de 1963, o Rádio Clube lança no ar um novo
programa de António Miguel e Curado Ribeiro, “Sintonia 63”, transmitido entre as 3h e as 6h, o
que, pela primeira vez, unirá de forma contínua e regular, a madrugada à manhã.
O pioneirismo destes programas fora antecedido por algumas experiências, como o
programa “Madrugada”, o
primeiro que teve uma noite inteira no ar, “Festival da noite”, que uniu, pela primeira vez,
com regularidade, a noite ao dia, transmitido entre as 2h e as 7h, na Rádio Voz
de Lisboa, embora apenas ao fim-de-semana, e “Enquanto os outros dormem” que, em 1962, nos EAL,
se transmitia durante as mesmas cinco horas nocturnas. Mas para além da rádio
que se alarga pela noite dentro, o movimento de extensão dos horários irá
pressionar a sua antecipação, durante as manhãs, impondo uma rádio mais
madrugadora. Em 1962, o RCP transmitirá, “Desculpe, mas já são horas”, emissão com início às
6h, preenchendo pela primeira vez esse horário até às 7h.
Dina Isabel Mota Cristo
- Universidade Nova de Lisboa
- Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Lisboa, 15 de Abril
de 1999
(Tese de mestrado
orientada pelo Prof. Dr. Francisco Rui Cádima e apoiada pela Junta Nacional de
Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), do Ministério da Ciência e
Tecnologia, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, para
obtenção do grau de mestre em Ciências da Comunicação.)