Programação (II)
Nesta primeira
metade da década introduzem-se factores dinâmicos de modernização na rádio,
como a saída da cabina e a emissão nocturna, e condições humanas de
desenvolvimento, como a existência de uma nova geração, formada na “Rádio
Ultramarina”, percursora da rádio viva e atenta, desenvolvida designadamente
por Sebastião Coelho e/ou José Maria de Almeida, e na Rádio Universidade (RU):
«Para isso, reuniamo-nos pela tarde fora experimentando novos sons, nova
linguagem radiofónica, novas formas de escrever para a rádio e nova locução»,
afirmava Adelino Gomes.
Adulta em termos
técnicos, é a técnica que lhe possibilitará a renovação do discurso
radiofónico, através de um novo canal autónomo do RCP que, utilizando a mais
moderna tecnologia de radiodifusão, a Frequência Modulada (FM), e com uma
equipa formada por uma nova vaga de jovens, irá permitir a experimentação de
novas linguagens. A esta preparação técnica não é alheio o papel da Rádio
Universidade na possibilidade que deu a jovens estudantes, maioritariamente
universitários, de ensaiarem, desde a sua fundação, em 1950, novas linguagens
técnicas e estéticas radiofónicas, dado o seu carácter totalmente amador. A RU
estava na dependência da Mocidade Portuguesa, do Ministério da Educação
Nacional e do Centro Universitário de Lisboa, e tinha o apoio (logístico) da
EN, através da qual difundia os seus programas, primeiro através da Lisboa 2 e
depois, com o mapa-tipo de 1967, da Lisboa 1.
Contribuiu assim
para o surgimento de programas como o “Em Órbita”, marcado pela inovações no campo da estética
radiofónica, fundado em 1965, por João Alexandre, Jorge Gil e Pedro Albergaria.
Aos dois dedos de conversa oca e vazia entre equipas de dois locutores como
lançamento de discos bem conhecidos do público, estes jovens estudantes,
amadores de rádio, propõem uma mensagem concisa e com conteúdo: «Era uma
linguagem muito sintética, substantiva, não havia divagações ou conversa para
encher tempo; não havia o tal diálogo entre normalmente uma voz masculina e
feminina para preencher o espaço que mediava entre dois discos». Ensaiam uma
linguagem clara e directa, dita apenas por um único locutor, sobre música
seleccionada, popular inglesa e folk, como a canção de protesto de Bob Dylan ou
o “Soldado universal” de Donovan.
Alguns dos discos
chegavam da Suíça, sendo portanto desconhecidos em Portugal; a sua transmissão
era acompanhada com textos explicativos. É o início de uma rádio conscienciosa,
que começa a confiar na sua peculiaridade.
Na segunda metade
da década de 60, nascerá um programa que repercutirá a influência das duas
características inovadoras do “Diário do Ar” e “Meia-Noite”, entretanto
extintos, juntando-as num único programa, nocturno, com uma inusitada dinâmica
informativa, o “PBX”,
programa produzido pelos Parodiantes de Lisboa e inicialmente realizado por
Carlos Cruz e Fialho Gouveia, nascido no dia 1 de Setembro de 1967.
A rádio passa, então, a interessar-se pelo que
ocorre fora das suas paredes e, mesmo à noite, dispõe-se a relatar o que vê. A
rádio ensonada acorda, desperta e agita-se; rejeita a rotina e a imunidade aos
imprevistos do dia–a-dia. Com enfoque na cobertura informativa, o programa
explora quer o directo quer o diferido, este último em esmeradas montagens. A
rádio entrega-se mais à vida.
Quando ocorrem as
inundações em Lisboa, em 1968, o PBX torna-se o sistema nervoso central de
informações e comunicações entre o público e as entidades oficiais,
ultrapassando o seu horário normal. A rádio deixa de padecer de autismo profundo,
passa a reagir. O seu ritmo e dinamismo são feitos com base em acontecimentos
como a nuvem de pirilampos no dia das mentiras, um banho à meia-noite ou
cantigas populares, mas a ruptura estética é profunda porque agita as águas do
mar parado, mexe com o “stablishment”,torna-se incomodativa.
Os lentos sinais
do despertar da rádio para a vida e para si própria, ao longo dos últimos anos
do Salazarismo, desaguam já na era marcelista, quando, um pouco emancipada,
reivindica uma atitude activa perante a realidade que a cerca, tornando-se mais
atenta e segura. À rádio alheada da realidade e viciada no sistema
“disco–anúncio-duas-tretas”, opõe-se uma nova rádio: observadora, curiosa e
crítica, uma rádio com alma.
Fruto de uma
ideia original do corpo redactorial e director da revista “Flama”, nasce em 2
de Janeiro de 1968, na RR, o “Página
Um”, programa pioneiro ao nível das preocupações político-sociais,
fundado pela citada revista, a Rádio Renascença e um elemento da empresa
construtora J. Pimenta, sendo transmitido entre as 19.30h e as 21h, de segunda
a sábado. Utilizando quer a doutrina social da Igreja, por um lado, quer as
crónicas de estações como a BBC, a Voz da América ou a Deutche Welle, por
outro, o programa autoprotege-se e, gradualmente, começa a emitir músicas e
palavras seleccionadas, colando-se à “nova canção portuguesa” que, como
explicava Adriano Correia de Oliveira, «surgiu em oposição a um “status quo”
que nos dava apenas letras de tipo evasivo, tendentes a alhearem as pessoas
dessas realidades [portuguesa actual]». Este facto é uma inovação quer em
relação à quantidade, rara, quer à qualidade da música portuguesa até então
habitual, já que dos 391 programas de música ligeira que a EN transmitiu, em
1965, por exemplo, Madalena Iglésias, António Calvário, Simone, Tony de Matos,
António Mourão e Maria da Fé se encontravam entre os mais ouvidos. A canção de
intervenção passa a fazer parte das listas de intérpretes que, algumas vezes
actuavam em directo, para uma audiência constituída por cerca de 80% de jovens,
de acordo com os estudos divulgados (embora não identificados), da época. As
ligações de alguns elementos do programa, quer aos cantores quer às suas
editoras, permitia o acompanhamento das edições do “canto livre”. «Até ao
momento em que “Página Um” apareceu havia um certo medo, como que um abafar da
canção social. Nós começámos a divulgar o Luís Cília (o segundo disco) e a
transmitir, quase diariamente, o dr. José Afonso e o Adriano Correia de
Oliveira (…). O Fausto, por exemplo, foi considerado a “Revelação do Ano 69” e
o José Afonso a “confirmação 69”» comentava, José Manuel Nunes, produtor,
realizador e apresentador do programa. O texto, que representava cerca de 20%
da emissão, era constituído por crónicas da Assembleia Nacional (originais do
jornalista Viriato Dias, lidas em directo), local de onde também chegava,
clandestinamente, o som do que lá se passava, e que foi transmitido até se ter
revelado interessante, mesmo após intervenção política de Marcelo Caetano em
sentido contrário.
Além das crónicas
menos inofensivas (havia, entre outros apontamentos de teatro, com Maria Emília
Correia, de cinema, com José Vieira Marques), emitia outras de política internacional,
as quais acabariam por levar à suspensão do programa, em 1972. Neste ano, o
“Página Um” receberia – em ex-aequo com o “Tempo Zip” e “Vértice” - o prémio da Casa da Imprensa, atribuído,
por unanimidade, com o objectivo de distinguir o esforço realizado no sentido
de dar corpo a um novo conceito de rádio, baseado «(…) num trabalho colectivo
de prospecção da realidade circundante». «O “Página Um”», comentava José Manuel
Nunes, em 1971, «é feito por uma equipa e o nosso objectivo, como rádio, é
atingir o ouvinte, não apenas sob a forma de um disco, mas alertá-lo para os
problemas que o rodeiam». Mesmo que tal o aflija: «temos também de incomodar o
ouvinte, não lhe dar só boas notícias,levar-lhe um pouco da realidade, mesmo
que ela seja feia e desagradável».
Num programa que
não foi permitido pela censura, a equipa decide fazer a cobertura da gravação
de um disco de José Afonso. Nesta emissão, em que os excertos de música
iniciais eram significativos, «companheiros de aventuras, vinde comigo viajar,
a noite é negra, a vida é dura, não faço gosto em voltar», a apresentação do
conteúdo do programa seria feito nos seguintes moldes:
«A “Página 1”
teve oportunidade de estar presente, durante três sessões de gravação do último
LP do José Afonso, “Venham mais cinco”, com direcção e arranjo do José Mário
Branco. Assistiu às gravações Francisco Fanhais.
Os depoimentos
que a “Página1” recolheu do José Afonso, do José Mário Branco e do Francisco
Fanhais, não são apenas uma recolha fortuita e momentânea de afirmações
despidas de significado; pelo contrário, querem mostrar quem são três dos mais
significativos nomes da nova música portuguesa. Esta emissão de “Página1”
preparada por João Alferes Gonçalves, José Videira e José Manuel Nunes quer ser
a leitura consequente das palavras daqueles três compositores e intérpretes
portugueses. Não existem acasos nesta emissão, mas pontos de reflexão e análise
às afirmações produzidas.
Finalmente, esta
emissão não pode ser encarada separadamente do contexto que rodeia a sua
transmissão. Feito este esclarecimento, aqui está “Uma noite em Paris”».
Esta rádio nova,
socialmente empenhada, contagiou não só consumidores como produtores,
nomeadamente na própria RR, onde, no ano de 1970, tem início um novo programa,
preocupado sobretudo com o seu conteúdo: «De parte das pessoas que fazem o
TEMPO ZIP há uma preocupação de levar ao público os temas de repercussão social
e, ao mesmo tempo, provocar no público uma reacção consciente ao estímulo que
lhe é transmitido (…). A inércia a que o público está habituado tem sido um
travão. A primeira grande dificuldade é afastar o público de um determinado
tipo predominante de Rádio, mais ou menos fútil e vazio, e despertá-lo para a
realidade que o deve preocupar».
Transmitido no
horário entre as 0h e as 3h, o “Tempo
Zip” veio ocupar as duas últimas horas da “23ª Hora” e entrar em concorrência
directa com o “PBX”, do qual haviam aliás transitado dois elementos (Carlos
Cruz e Fialho Gouveia).
Emitido no mesmo
horário, a sua criação veio provocar no “PBX” uma reacção que se pautou por uma
nova linha (a partir do dia 15 de Abril de 1970) e novos meios (como a
aquisição de um helicóptero), assegurada por Paulo Cardoso, que lhe imprimiria
um novo dinamismo transmitindo emissões como a de o “Eléctrico chamado PXB”.
Gabriel Valle,
crítico de rádio, salientava em Junho de 1972 o papel de “Página Um” e “Tempo
Zip” para o despertar de uma rádio mofa, que vivia praticamente adormecida e
estagnada: «Através de operações por telefone, de reportagens no exterior,
inventam o interesse no público pela existência de uma rádio que já não é simples
objecto de decoração ou de acompanhamento de fundo. «Fazer rádio é a nossa
forma de intervir. Fazer rádio é a nossa forma de estar no tempo. A rádio nova
existe e existem pessoas que não estão na rádio para vender detergentes».
Procura-se a relação do jornalista com a rádio, de uma rádio formativa e
informativa.
Já passou o tempo
do caixote de música e de anúncios, do locutor fulano-ignorado-e-indiferente.
«A rádio é onde está presente o homem e a sua consciência, o homem e os seus
problemas, o homem e o seu tempo, o homem que fale de frente. Acabou a narração
do «coisa nenhuma». É o tempo de estar aqui».
A rádio, já
desperta, agita-se, anima-se, injectando vida nos programas nocturnos. A noite
passa a ser um horário nobre e, em 1970, a “Rádio & Televisão” reporta o
fenómeno: «A rádio comercial portuguesa passa neste momento por uma fase de
intensa actividade, expressa sobretudo numa ruptura com um passado ainda
recente de esquema rotineiro e manso, sonolento e doce. A nova fase tem maior
incidência na programação nocturna, a que ultrapassa a meia-noite, durante as
horas que foram durante muito tempo consideradas mortas. Esse tempo é agora
aproveitado pelas estações emissoras para o lançamento dos seus programas de
maior audiência. O horário passou a ser disputado a peso de ouro pelos
produtores. Num ápice, o que era noite, silêncio e quietude tornou-se vida,
ritmo, actividade, bulício. Revelou-se um número considerável de ouvintes,
atentos e despertos. A noite tem gente. Vibração. Nervos. Acção e sentido.
Descobri-la e descobrir-se foi a palavra chave da Rádio. Modernizar-se,
actualizar-se, ganhando vivacidade e consciência de si própria e dos ouvintes
foi o caminho. Saiu do estúdio. Deixou o remanso dormente. Acordou e ajudou a
despertar. Sacudiu insónias e roupagem descolorida. Animou-se. Começou a vestir
de cores vivas. Descobriu a reportagem, a crónica, e redescobriu o disco.
Dinamizou-se, acreditando que o suor é necessário ao prestígio, tornando-o
sólido, vivo e verdadeiro. Escolheu um caminho. E segue-o».
Em 1970, a RR
inaugura a sua emissão contínua ao lançar “Estamos consigo na madrugada”, entre as 3h e as 7h,
um programa que se seguia a “Tempo Zip”, apresentado por José Manuel Nunes, e
cujo lema era: «Consigo, que trabalha de noite, para que os outros possam viver
de dia». Completavam-se, assim, as emissões de 24 horas diárias entre as três
principais estações portuguesas: o RCP transmitia “A noite é nossa”, entre as 3h e as 6h, programa
apresentado por Ruy Castelar, com o lema: «Enquanto estiver acordado, a noite é
nossa!» e a EN transmitia o “programa
da madrugada”, entre as 2h e as 7h, apresentado por Raul Durão, cujo
lema era «Quando a noite é mais noite, dizemos bom dia».
E serão dois
programas nocturnos que elevarão a contestação ao seu mais alto nível, em Abril
de 1974: o “1-8-0”,
iniciado no dia 21 de Setembro de 1967, transmitido entre as 22h e a 1h na
Alfabeta, nos Emissores Associados de Lisboa (direcção que reunia a Rádio
Peninsular e a Rádio Voz de Lisboa), e que foi distinguido com o Prémio da Casa
de Imprensa, em 1972, «(…) pela sua vivacidade e pela sua preocupação de
actualidade(…)», e o “Limite”,
transmitido na RR, entre as 0h e as 2h, e produzido por Leite de Vasconcelos,
Carlos Albuquerque, Manuel Tomás e Costa Martins, para quem o objectivo era
«(…) ir até ao limite do que é possível fazer na rádio portuguesa, não
exercendo, propriamente, uma função política mas despertando as pessoas para os
problemas que são os seus e para os quais devemos estar de olhos abertos».
Contributo
decisivo para o derrube do regime, a rádio nova fora o facto mais relevante ao
longo dos anos estudados na programação da rádio portuguesa. Caracterizada por
um conjunto de novas propostas, radicalmente diferentes do “status quo”
radiofónico habitual, assentes em conceitos, posturas e conteúdos inovadores,
apresenta um novo projecto de rádio, de ruptura com a linguagem, a técnica, a
estética e a ética até então formuladas. Resultado de uma nova geração de
profissionais, mais cultos, mais rebeldes e mais competentes, estes afrontam a
geração anterior: «Achávamos que a rádio daquele tempo era uma rádio de mau
gosto, medíocre, desinteressante, feita por gente completamente instalada,
escribas sentados, conformados com os seus patrões, com a estética dominante
(…) era a rádio de família, uma rádio do regime, acética, pura, quer dizer…
mentirosa. E quando nós vamos para lá e vamos perguntar às pessoas se gostaram
do filme e uma Maria diz uma coisa qualquer, e não é um crítico, isto vem
implicar trazer para a rádio um pouco da verdade e não da ilusão de um mundo
que não existia». Estes novos profissionais transportam para a rádio uma forma
de estar e viver diferente e fazem um corte com a rádio tradicional, produzida
por Gilberto Cotta e/ou Armando Marques Ferreira. Há um combate entre
concepções divergentes; luta-se pela introdução dos novos ritmos musicais estrangeiros,
por dar voz ao cidadão comum, por falar em cima dos discos. É a inovação
formal, «(…) mas isso era, na dureza do regime [salazarista], uma coisa
completamente perigosa (…)». É uma rádio de intervenção estética e, nesse
sentido, era já política, porque agitava, incomodava, fazia perigar a situação
instalada, agitava as ondas radiofónicas. A procura de perfeição levava a que
uma simples mistura de discos significasse algo mais; além de agradável,
auditivamente interessante, original e criativo, consubstanciava implicitamente
um conteúdo. O expoente desta rádio temática, muito mais preocupada com os
autores das canções do que com os seus intérpretes, e que vai tentando alargar
ao máximo o seu leque de assuntos abordados acontece durante o marcelismo. No “Tempo
Zip”, houve crónicas sobre Portugal com Agostinho da Silva, revista de imprensa
com Joaquim Letria, poesia com Alexandre O`Neill, urbanismo com Nuno Portas. O
desejo de rompimento foi profundo e consequente.
Dina Isabel Mota Cristo
- Universidade Nova de Lisboa
- Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Lisboa, 15 de Abril
de 1999
(Tese de mestrado orientada pelo Prof. Dr. Francisco Rui Cádima e
apoiada pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT),
do Ministério da Ciência e Tecnologia, apresentada à Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade
Nova de Lisboa, para obtenção do grau de mestre em Ciências da Comunicação.)