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quinta-feira, maio 24, 2012

Contos do Gin-Tonic

A elaboração do artigo sobre o "Noites Longas" trouxe-me à memória este livro, que julgo possa ter influenciado o tipo de contos que ali foram divulgados, bem como no "Pão com Manteiga", ou não tivesse o Couto e Santos feito parte da redacção de O COISO, de que MHL foi chefe de redacção.
Merece pois, na minha óptica, ser relembrado ou dado a conhecer.

"Contos do Gin-Tonic", de autoria de Mário-Henrique Leiria, foi publicado em Março de 1973.
Na época era um livro de pequenos contos, mordazes, irreverentes, rebeldes e surreais, bastante actual, mas que passava despercebido, no final da "Primavera Marcelista".
(a foto repetida na capa é de MHL)
Julgue por si:
 
CARREIRISMO
Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chofér fardado.
Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.

HISTÓRIA EXEMPLAR 
Entrei.
– Tire o chapéu – disse o Senhor Director.
Tirei o chapéu.
– Sente-se – determinou o Senhor Director.
Sentei-me.
– O que deseja? – investigou o Senhor Director.
Levantei-me, pus o chapéu e dei duas latadas no Senhor Director.
Saí.

CASAMENTO
«Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.»
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.


A VELHA E AS COISAS
 Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também tinham de ser pequenas, para caberem.
Daí os partidos. Havia o Partido Blicano e o Partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a Oposição.
Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.
Portanto as coisas lá iam, o comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import funcionava mais ou menos.
Mas também havia as eleições à porta. Era preciso tento, nada de imprevidências. E chamou-se o Galvez, dos Suplementos Literários, para montar o processo jurídico, organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser.
O Galvez organizou.
Leram-se as dignidades do preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música histórica, própria da conjuntura.
Assim se foram três meses, com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não sabiam.
Então chegou o dia do voto. Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem fez-se.
A informação foi a seguinte:
Sopa de Feijão Branco (candidato Blicano)............. 13 728
O Bode (candidato Crático)....................................  13 727
D.ª Josefa Sur-Mer (candidata independente)......... 13 726
O General (candidato)....................................................13  

Donde, conforme a Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.
Havia os seguintes impedimentos legais:
Sopa de Feijão Branco não residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto).
O Bode era menor e não estava inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente).
D.ª Josefa Sur-Mer não sabia Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e, além disso, era Sur-Mer (totalmente inconstitucional).
Vendo o acontecimento, o Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era residente perpétuo.
O Galvez foi chamado. A Velha falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era patriota. O Galvez ficou convencido.
Daí em diante o Galvez passou a negociar – com exclusivo próprio – na exportação da nêspera conservada, do pescado enlatado e da camisa em renda de bilros. Teve também o Turismo e o Gabinete Alfandegário.
Aqui se vê, portanto, que a coisa pública seguiu esclarecida, firme, como era de desejar.
No entanto, dado o tamanho realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar, houve que fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e os Independentes, devido à situação económica e à outra, ficaram apenas Pendentes.
Visto isto, o Galvez foi de ministro plenipotenciário para Tombuctu.
Como dizia a Velha, no seu habitual «Colóquio à Lareira» pela televisão:
– Para a frente, meus filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.

Medicina tropical
O calor era alucinante. A chuva caía pesada, num jogo de massacre.
Sentiu que tinha uma tremenda dor de cabeça. Dirigiu-se ao posto clínico.
- Isso é coisa sem importância – disse o médico. – Tome estes comprimidos – deu-lhe três.
Tomou.
O calor continuava, sólido e exacto. A chuva também, persistente.
A dor de cabeça estava aumentar. Voltou ao posto clínico.
- Vamos já tratar disso – afirmou o médico. – Ora vire-se para lá.
Virou-se.
O médico proporcionou-lhe quatro supositórios.
O calor ainda; e a chuva. Sempre.
A dor de cabeça a estoirá-lo. retornou ao posto clínico.
- Vai ver que fica bom – explicou o médico. – Ora abra a boca.
Abriu.
O médico extraiu-lhe imediatamente dois molares e um canino.
O calor estava realmente alucinante. A chuva era espaço líquido.
A dor de cabeça a invadir-lhe o corpo todo. Foi ao posto clínico. Uma vez mais.
- Então como vai isso? – perguntou o médico.
Puxou o facão e espetou-o, preocupado e consciente, através do médico.
Resultou.

Rifão quotidiano
 
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Última Tentação
 
Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!


Torah
 
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.


Biografia:
1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa.
1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos.
1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida
1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África.
1958: Visita a Inglaterra.
1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se.  
1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil.  
1970: Regressa a  Portugal.  
1973: Publica Contos do Gin-Tonic
1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal.  
1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, ( com Rui Lemus, Carlos Barradas, Couto e Santos e uns tantos outros), suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos)
1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), na sequência do 25 de Novembro de 1975,  
1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. -  
1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).

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