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quinta-feira, fevereiro 24, 2011

CARTA DE UM FILHO AOS SEUS PAIS

Pai, Mãe
Vim hoje do médico. Cansaço, emagrecimento levaram-me lá. As análises foram taxativas. Eu tenho cirrose alcoólica.
Falámos longamente do tratamento que se vai seguir... e, durante todo o tempo que estive em consulta me vinham flashes dos shots que fui consumindo – meu Deus ! desde os 16 anos! O médico explicou-me todo o processo – destruição gradual das células do fígado com formação de cicatrizes. As lesões são irreversíveis, o tratamento vai ser longo. Doze anos de vida produtiva em relação à média já foram ao ar – isto vi eu na Internet. Algumas complicações são de esperar ao longo do resto da minha vida mas, diz-me o médico: "cá estaremos para dar resposta". E penso : Pisanganbom, Vodka e Absinto ou Gin, Vodka de Menta, Tequilha ou ainda Absinto, Martini e Moscatel. Arrepiados.? Nunca vos disse...verdade é que também nunca perguntaram...
Perguntar pergunto-me eu como é que aqui cheguei.
O Baródia, a discoteca para os putos!. O Diogo a insistir, vocês a hesitar. O que eu desejei que vocês dissessem que não. Queria mas não queria ir. Com 12 anos não queria ser arrancado ao meu mundo das aventuras virtuais e de livro, de continuar a viajar nos mares do sul infestados de piratas e da Corte do Rei Artur com cavaleiros heróicos e damas para salvar...mas queria...não queria ser puto para os outros e o que é que se passava ali que eu ainda não tinha experimentado?...ao que parece era o único... mas disseram que sim...dizias tu Pai que querias que eu fosse feliz e mais não sei quê que não serviam bebidas alcoólicas e que o que é que se pode fazer a pressão é grande e não se consegue lutar contra todos... e lá fui...primeiro a vergonha total...depois o imitar dos outros...o ensaiar a posição ao balcão com o copo de sumo...e a camisa de fora das calças..e os sapatos de vela...e a mistura de águas de colónia...os putos agora acham que esta fatiota é de beto e vão de T-Shirt e jeans...betos na mesma – nada de novo. Depois foi o estádio seguinte...o Garage...a meca dos semi-putos. Eu,o Francisco e o Diogo, com o nosso metro e oitenta com 15 anos já parecíamos ter 18 e lá entrámos a medo...foi a nossa noite de glória...enfiados a um canto não nos atrevíamos a dançar... e não dançámos...a noite toda, passeávamos por ali com um copo, falávamos ao ouvido uns dos outros a mostrar que...Olha o Garage para nós...praticamente nascemos aqui...e a droga a passar e o treino que fomos tendo...cuidado com as pastilhas maradas...informo-vos Pai, Mãe que maradas são pastilhas de ecstasy adulteradas... não faziam ideia pois não...também vos podia falar das anfes e da gulosa e porque é que nas discotecas fecham a água nas casas de banho...e também das brancas que alguns dos meus amigos tiveram por causa da erva e daqueles que eu vi a tripar...lembras-te do Salvador? Assustaram-no em plena trip, percebem agora porque é que ainda está em tratamento psiquiátrico?... a esta distância dá-me vontade de rir e ao mesmo tempo pergunto-me porquê...durante todo este tempo levaram-me à escola e foram-me buscar..com medo que eu fosse...assaltado...e esperavam por mim à porta do Garage para me levarem a casa...a ironia é colossal não acham...o perigo estava lá dentro e vocês a guardarem-me cá fora...e bastava que dissessem que não. Mas não disseram, queriam que eu fosse feliz e uma das maneiras de lidar com o medo é fugir...para a frente...depois aconteceu a Susana, namoro de puto – curto e intenso – era o primeiro a sério – muitas vezes vocês me disseram que era novo e que não me devia agarrar pois haveria de ter muitos namoros e que até devia variar...não calculam o que isto me magoou...para mim naquele momento o meu amor pela Susana era eterno...mas vocês não perceberam, aliás nunca perceberam nada, até porque para perceber é preciso ter tempo e tempo para mim nunca houve...calculem o meu espanto quando, ao mesmo tempo que me disseram isto começam a convidar a Susana para jantar e passado pouco tempo a passar férias connosco...curiosamente a mãe da Susana também me convidou...o nosso namoro não era para levar a sério mas vocês trataram-nos como se estivéssemos noivos em vesperas de casar e só tínhamos 16 anos...bem me diziam que, aos jovens de hoje, não basta bússola é preciso GPS...claro está que o namoro durou mais do que devia, quando quisémos acabar tínhamos, contra nós, o peso das duas famílias, ficámos os dois magoados, a Susana não ficou grávida por mero acaso e, a esta distância, pergunto-me se não seria isso que queriam todos...mas aprendi a lição; dos meus namoros seguintes nada vos disse apesar da perseguição policial da mãe...só que os meus namoros seguintes passaram a ser mais flirts...o medo de ser outra vez abafado por um compromisso a 6 era demais para mim...a ingenuidade e tudo o que ela tem de bom perdeu-se...vocês acabam sempre por me tirar qualquer coisa e querendo que eu seja feliz...e livre...mais livre do que vocês foram na minha idade...tretas...a esta distância vejo bem como eu na ilusão de ser mais livre nunca estive tão preso e tão vigiado, nunca um namoro foi tão controlado e nunca uns pais foram tão liberais...e pensando bem ...quando, feito estúpido, aos 14 anos comecei a chatear-vos para ter um telemóvel, assinei a minha completa rendição ao vosso controlo; com o telemóvel eu estava sempre ao vosso alcance, no entanto vocês, na minha idade, não. O máximo que eu podia fazer era desligá-lo...mas não por muito tempo, senão vocês iam à minha procura ou, pior telefonavam para o telemóvel do Diogo, do Francisco ou do Salvador, ou as duas coisas..e, mais sinistro, eu, numa aflição fui sempre pelo caminho mais fácil: telefonava-vos. Assim vendi eu a minha independência por cobardia...cobardia essa que vocês, aliás, cultivaram com esmero...aos 13 anos ainda tinha que ter a luz do corredor aberta para conseguir dormir...mas já ia ao Baródia...e o cartão Multibanco...é que é preciso ser mesmo tapado...feliz que eu estava com o dito...e todos os meses o Pai sabia, pelo extracto, os sítios onde eu tinha ido e quanto tinha gasto...mais tanso não se pode ser...depois foi a falta de imaginação do costume...Kings and Queens e Kapital ...até deviam pôr setas e fazer um roteiro...a peregrinação dos tótós... e os shots, foi fácil escolher, está bem de ver, com o que aconteceu ao Salvador foi ponto final no circuito das drogas, os shots também intoxicam, também dão euforia, descontraem e..são legais...e agora estou com 20 anos, uma cirrose, a vida encurtada e da vida só sei enfiar alcool, ir às discotecas, engatar e arrastar-me por um curso onde entrei tarde e de que não gosto e...nada disto faz sentido...e não sei ser feliz...aquilo que vocês queriam...queriam mas não me ensinaram a ser...e no entanto sei que tu Pai com 16 anos andaste a fugir do COPCON porque eras do MRPP e que conheceste a Mãe que era do PCP, quando, em direito vocês se preparavam para mais uma sessão de tareia, e eu com essa idade em que vocês lutavam pela vossa visão de Karl Marx...andava metido em batalhas de balões de água...e soube da vossa vida pelo tio Artur, nunca por vocês e teria adorado saber por vocês...teria adorado partilhar a vossa história e as vossas causas...mas não...a esta distância vejo que a vossa preocupação foi de parecer que tinham a minha idade e quem tem a minha idade não pode ter história...
Pois bem, foi preciso que a minha saude ficasse lixada para finalmente parar e pensar...pensar que a vida é muita coisa...é pelo menos muito mais coisas do que o meu estado de imbecil permitia ver...e está aí...aí mesmo ao lado...e é gratuita e não tem etiqueta Timberland...vou pôr a mochila às costas, deitei fora o cartão Multibanco e o telemóvel e vou por aí...agora sim vou aprender a ser feliz...  

Valentino Barroso

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